terça-feira, 3 de março de 2009

Os anos se passaram

Fazia algum tempo que ele não a via. Ela, porém, encontrava-se no mesmo lugar de sempre: apartamento 61 do edifício Bela Vista. Aliás, ele não tinha esse nome por um acaso, a paisagem que se esmerava daquela sacada era magnífica; montanhas, pôr do sol e muitas casinhas modestas. Entrou sorrateiro, como sempre fez. Ela resava, para variar. Sussurrava algumas palavras que por hora se perderam com aquele reencontro. Ele pediu a bênção. Ela fixou os olhos nele e disse: você está tão bonito! Agradeceu de bom grado e foram para a sacada. Lá, naquele vaidoso mirante é que se deu o lapso. Ela não reconheceu nele a pessoa que ele dizia ser. Confundiu os netos. Sim, eles eram parecidos, mas não tão iguais a ponto dos olhos de uma avó não os distinguir.

Foi triste.

O tempo é implacável e como dizia Gregório de Matos: "...trota a toda lijeiresa e imprime a todos sua pisada..."

Todos nós sofreremos desse tormento. O tempo é o maior paradoxo tangível. Com o mesmo fervor que ele cura a dor incurável ele implaca a dor que não passa. É relativo, fugidio, vago, imenso, pequeno, vil, doce ...

Não fora a primeira das confusões. A lucidez já não é a mesma e se apresenta como um retrato deturpado das vicissitudes cotidianas. Porém, caro leitor, se você, agora, lembrar-se de alguém em situação parecida, se se identificou com tal relato, não sinta pena.
Da mesma maneira que o neto soube interpretar o equívoco naquele olhar denso, ele soube identificar um amor que palpitava pelos olhos de sua avó, piscinas que saltavam à face dela. Este, o amor, sempre será o mesmo; inesquecível, intransferível e que ficará guardado no maior encanto de quem conhece a bela jornada já traçada e que reconhece naquele ser humano "estranho" toda a sua beleza.

4 comentários:

Alice Agnelli disse...

tive que ler mais de uma vez esse seu post.

denso, bonito, gostei.

(sem contar que eu tive a certeza da sua marca do "caro leitor"! hehe)

p.s.: meu prédio também se chama Bela Vista.

Amanda Previdelli disse...

lindo... parece triste, mas é tão leve que a gente esquece da tristeza. Fica só no [amor] incondicional, mesmo.

Marina disse...

Aquela conversa virou um lindo post, ou será que o post veio antes da conversa e só agora eu li?

eu me identifico,e você descreveu com perfeição o sentimento: não é pena, é tristeza, uma tristeza diferente e bela que traz consigo muitas reflexões acerca do tempo, do amor, de nós mesmos...

Maria Joana disse...

"Este, o amor, sempre será o mesmo; inesquecível, intransferível e que ficará guardado no maior encanto de quem conhece a bela jornada já traçada e que reconhece naquele ser humano "estranho" toda a sua beleza."

lindo, Du. Me lembrei imensamente da minha vó, com a qual se sucedeu exatamente o mesmo.
para todas os netos ela repetia:

"Ocê é a neta preferido da vó, viu?Ô, fia, como cê tá bonita!"

e as netas, sempre:

"Puxei pra senhora, vó."

"Ahh, a vó é véia."

"Mas era moça linda quando casou com o Mirto, não? Então, puxei pra senhora."

"Ahh.... o Mirto..."


Realmente, o sentimento não era pena. Tristeza..
E agora a saudade apenas. A saudade que cheira a ela... cheiro de talco, pó de arroz e batom.